O Homem e Sua Culpa
- Paulo Denis Pereira
- 17 de ago. de 2015
- 13 min de leitura

Dona Alvina esfregou as mãos úmidas nos amplos quadris, apanhou a colher grande e pôs-se a mexer os ovos na frigideira. Sem descuidar da fritura, voltou-se novamente para o corredor. Todos os outros hóspedes da pensão já haviam descido para o café, mas, nada do Euclides! A dona da pensão estava cismada. Euclides não abria a porta do quarto havia quatro dias. Não descera mais para o desjejum em que, amuado e quieto, habituara-se a sentar-se solitário à mesinha junto à janela, acomodando com dificuldade as largas costas à cadeira que lhe parecia cada dia menor. Debruçava-se sobre a xícara, como se pretendesse escondê-la, mergulhava as bolachas no café e sorvia-as em ruidosas colheradas. Dona Alvina imaginava haver um gozo secreto naquele demorado beber pastoso do hóspede que recorria repetidamente ao guardanapo para evitar que um desafortunado pingo de café pudesse macular o terno, a camisa ou a gravata que compunham o traje do pretensamente Encarregado Geral da Fábrica de Sabonetes Delirium. Deslavada lorota! Poucos sabiam, mas, na verdade, ele nada mais era do que um simples carimbador de notas. Havia, vejam só, até quem o chamasse de doutor Euclides. Esses diziam, convictos, que o homem possuía berço, pois pertencia à família Aires Cavalcanti, em cuja parentela despontavam um deputado federal e um industrial. Desprezando-se essas descabidas fantasias, é fundamental se registrar que é competente em seu ofício. Além dos olhares zombeteiros e dos costumeiros tapinhas às costas dados pelos colegas, Euclides percebe-lhes a inveja ao vê-lo carimbar com maestria as notas de entrada e saída de material do almoxarifado. Nunca carimbou fora da margem do papel! Sempre apõe o carimbo com sua assinatura caprichada nos espaços mais destacados dos documentos. Não se separa do carimbo, que guarda envolto por um plástico num bolso interno do paletó, do lado esquerdo do peito, qual um troféu ou, talvez menos, um atestado de vida. Uma observação ligeiramente atenta para aquela carantonha apalermada e para aquele olhar esquivo e assustadiço, amarrotado sob grossas sobrancelhas, logo revelariam o espírito servil e sem ambição com o qual Euclides José Aires Cavalcanti tentava suportar o mundo. Sentia-se um cheiro ruim na pensão, mas sua origem era desconhecida. O bancário Antônio, de bigodinho arqueado em curvas para o alto que excitavam a insaciável namoradinha, logo cogitou do desleixo de dona Alvina. Convenceu outros hóspedes que, por avareza, à noite ela desligava a geladeira e os frios e carnes estragavam. Por causa da desconfiança de Antônio e por outras pequenas e maiores tolices que costumam ocupar a cabeça de todo o mundo, a verdade ficaria escondida por tantos dias.
EUCLIDES ACORDA - Seu despertar é amargo, de arquejante respirar e intensa melancolia que o toma como visco pestilento. Ainda deitado, olha a cômoda com o pé quebrado, o roupeiro amarelo, as roupas espalhadas pelo quarto. Vê vestígios de barro no cobertor puído. Observa os montinhos de madeira roída junto aos rodapés, imagina escutar nitidamente o mastigar dos cupins. Ouve um chiado com estalos que vêm da cozinha, sente o cheiro enjoativo de ovos fritos. Está vivo, conclui. Sua travessia ainda não terminou. Mais um dia terá que carregar seu fardo de noventa e dois quilos, esse desconjuntando amontoado de ossos, vísceras, orifícios e aflições. Terá que descer do quarto, ver pessoas, dizer a todos que está tudo bem (“Não se incomodem, por favor.”). Precisará trabalhar, almoçar, trabalhar e voltar para a pensão. Não tem emoções. Há apenas esse vazio vital que lhe corrói as entranhas. Fará novamente o insípido desjejum como se estivesse dando ração a um grande cão moribundo. Não há o prazer imaginado por dona Alvina, nada lhe apetece. Ele come apenas por necessidade fisiológica e também porque, como cristão, não lhe compete desrespeitar a lei divina e deixar-se morrer. Nesse instante, dezenas de insetos emergem de sua boca e voam atarantados pelo quarto à procura de espaço e ar. Euclides também busca avidamente o ar, mais uma vez. O quarto balança, o mundo foge-lhe. Ele desfalece.
SEU PRIMEIRO PECADO - “Vovó estava nos visitando. Viera de trem da capital. Lembro que não carregava malas, mas, sim, sacolas amarradas com fitas coloridas. Temendo finórios tipos que viviam a perambular entre os vagões, valia-se das cores em sua permanente vigília. “Comigo, não, violão!”- chegara a cochichar, raivosa, para um indivíduo suspeito que passara entre as fileiras dos bancos, quase roçando sua perna. Seus olhos verdes não piscavam, pois estavam cravados naqueles singelos volumes que reuniam farofa de galinha, linguiça, bolachas, cuca, garrafa de água, anáguas, sutiãs, o batido vestido de algodão... Os poucos trocos, o ruge e o Leite de Rosas acomodavam-se na frasqueira. Quando saía de casa, sempre se empoava com ruge, olhando-se no diminuto espelho preso no interior da frasqueira e desculpava-se: - Eu não me pinto, não. Não sou dessas! Só passo um rugezinho para dar uma coradinha no rosto. Mas, para os que comentavam o verde de seus olhos, vovó tinha a frase pronta, desprovida de qualquer modéstia: - São da cor dos olhos da Marta Rocha – dizia, referindo-se à Miss Brasil, uma bela baiana que, para frustração do povo brasileiro, teria sido alijada da coroa de Miss Universo em 1954 por duas polegadas supostamente excessivas nos quadris. A pequena silhueta de vovó postada no vão da porta recortava a luz da manhã que ia entrando de mansinho, fazendo brilhar as panelas sobre o fogão à lenha, jogando o tom verde da toalha plástica da mesa sobre todas as coisas e pessoas que ali estávamos – papai, mamãe, meu irmão, minha irmã e eu. Vovó mirava flores ao longe que lhe inspiravam tíbios suspiros, evocando tristes lembranças de uma vida de muito trabalho – na roça, em casa, na roça, em casa, na roça... Desde a infância acordava madrugada escura para tirar leite das vacas, fazer café com bolo frito e, em seguida, rumar para as raquíticas plantações da família. Sem pudor, com sofrimento, citava o moço bonito e estudado que não pudera desposar porque quem decidia sobre o casamento eram os pais. Isto não se discutia nos tempos em que vovó era jovem. Quando ela falava no moço amado, eu imaginava um daqueles príncipes que tomavam por inteiro a tela da matinê do Cine Real no filme “Sissi, a Imperatriz”. Vovó plantou mandioca, vendeu flores, ovos, galinhas. Até ossos e garrafas negociou com o ferro-velho. Fez de tudo para sobreviver, mas no final da vida dependeria, ainda, de pouso, alimento e favores de parentes. Pouco sorria e, se lhe fazíamos um carinho, ela, desacostumada de gentilezas, logo devolvia um olhar que exprimia espanto e desconfiança e, por fim, quedava-se duro e tristonho. Deixei os queixumes de vovó na cozinha e fui para a sala. Passei ao lado da cristaleira. Eu não compreendia a utilidade daquele móvel envidraçado cheio de finas taças, copos de cristal, jarras ornamentadas e vidros de balas que não podíamos comer. Só tinha coisas que nunca usávamos. Era como uma vitrine dentro de casa. Parecia uma estranha brincadeira ou loucura dos adultos que aparentavam tudo saber da vida e que davam todas as ordens em casa. Vovó, papai e mamãe podiam dizer que pau era pedra e ninguém ousava discordar. Era assim e ponto final. - Vai buscar meio quilo de pão d’água – ouvi a ordem de mamãe e prontamente saí em direção à padaria. Eu sempre olhava embasbacado a arte de seu Joaquim no enrolar do pão. Várias vezes tentei imitá-lo e não consegui. O gesto do comerciante era simples e rápido. Colocava o papel sobre o balcão em posição diagonal e punha o pão bem no centro. Em frações de segundo, papel e pão davam uma pirueta no ar entre as mãos do padeiro e eis-me aqui, ainda hoje, segurando o pão embalado, com um tope de papel bem ao centro, na parte superior, e as extremidades descobertas. Inesquecível magia, com cheirinho saboroso de pão fresco. Recebi troco e um carinhoso cascudo na tampa do meu cabelo, cortado feito milico. Senti-me feliz com a arte e com o agrado do português. Estávamos na primavera de 1959. Eu era um pirralho de seis anos que ainda frequentava o Jardim da Infância e agora, já de café tomado e pão comido com manteiga e salame, estava deitado de costas na grama do quintal, sob um lindo céu azul que enchia de calor e beleza toda a cidade, cobrindo igualmente os bairros ricos e as casinhas dos pobres. Com as mãos cruzadas por trás da cabeça, eu olhava extasiado as nuvens, que, com seus gigantescos flocos de algodão, compunham imagens de cavalos, elefantes, fadas e até mesmo de uma gorda e alvíssima mulher que se assemelhava à rainha má do Circo do Duduco, que, de tempos em tempos, se estabelecia na cidade para alegrar a gurizada. Um soprar de brisa e novas figuras se formavam: leões, dragões, raposas, a imagem de um senhor de cabelos brancos que deveria ser Deus. Afinal, quem é que poderia estar no céu senão Deus mesmo? Era igual à imagem daquele velhinho de barbas brancas pairando acima das nuvens, naquela aquarela em tons branco e azul, pendurada num prego no quarto de minha avó. Imaginei que o céu seria um vasto mundo azul em que nunca os mais velhos ralhariam com as crianças. Eles somente as beijariam com carinho. No céu, não haveria ladrão, nem escola e nem cachorro brabo. Lá eu seria beijado por papai e ficaria com o perfume de sua loção pós-barba. Me sentiria amado e cheiraria como um homem de verdade. Não usaria as ridículas calças curtas amarelas com suspensórios que eu e meu irmão éramos obrigados a vestir, como se fosse um uniforme de família, quando saíamos todos a passear com papai e mamãe aos domingos, admirando as vitrines das lojas do centro da cidade. Lá, creio que nunca ouviria a brincadeira que meus pais e minha avó faziam comigo, por causa de meus pretos cabelos, que destoavam de meus louros irmãos: - Ele não é da família mesmo, foi achado na lata do lixo – diziam em despretensioso gracejo que por vezes me provocava suspeitas e aflição. Então ouvi uma doce e sentida canção. Mamãe lavava roupas e cantava. Isto era tão raro e tão sublime, mais fascinante até do que a boneca de anil que ela usava para branquear as roupas. Eu não entendia: era como as alquimias e os segredos sussurrados que as mulheres trocavam entre si. O anil era de um azul mais azul que se possa imaginar. Como conseguia clarear os tecidos? Por que as roupas não ficavam todas azuis? Levantei-me enquanto as nuvens continuavam a desenhar, abri o portãozinho verde e subi a rua. Ia devagar, docemente embalado pela voz tremida de mamãe, sem bem saber o que fazer. ‘Um piá sem serventia’, diria meu avô, para quem cachorro e criança não tinham querer. Ia cruzando mais uma vez os trilhos da rede ferroviária. Nossa casa era bem pertinho dos trilhos. Era a terceira depois dos trilhos. Quando um trem passava, minha casa sacudia todinha. À noite, primeiro eu ouvia apitos ao longe, depois o resfolegar do gigante de ferro, e então o tremelicar da cama, que quase me atirava ao chão. Cada passar do trem era um desmanchar da casa. De manhã, a primeira coisa que eu ia olhar era a cristaleira, mas, para minha surpresa, nada havia se quebrado. Taças, xícaras e copos estavam intactos. Eram como indestrutíveis lápides. Naquela manhã olhei de forma diferente para a geringonça que redirecionava os trilhos. Eu sempre via os ferroviários chegando em estranhos carrinhos sobre os trilhos, os troles movidos por alavancas que manejavam como se fossem barqueiros usando remos. Eles vinham de longe, examinavam os trilhos, arrumavam os dormentes e muitas vezes mexiam na geringonça que descobri chamar-se chave, cuja função era a de desviar a locomotiva e os vagões para um pequeno trecho de trilhos, para eventuais reparos ou mesmo para troca de rota dos comboios. Lembrei que, dois dias atrás, estivera ali, abaixado junto à chave, mexendo desesperado nos cadarços dos sapatos. Mas, por mais que tentasse, não conseguia compor nem laço nem nó. A voz embrutecida de papai ecoava em meus ouvidos: - Deixa, mulher. Ele tem que aprender! Se não amarrar os sapatos, não vai ao Jardim. Primeiro embrabeci, envaretei-me. Pensei em jogar-lhe na cara um ‘vá lamber sabão, meu chapa!’. Mas preferi ficar na minha caladice porque eu não era nenhum bocó para afrontar a sua autoridade. Aí, meu estômago embrulhou, o rosto esquentou, avermelhou-se. O ar me faltava, o coração batia mais ligeiro, tal como o daquele passarinho que uma vez mamãe colocara na minha mão. O bichinho havia entrado, desorientado, pela janela da sala cuja vidraça estava aberta e agora andava de mão em mão, apertado, esmagado. ‘Segurem firme para que não fuja já, temos que mostrar para as crianças. Euclides, veja que amor’, dissera minha mãe, ao assentar cuidadosamente aquela criaturinha tremediça na palma da minha mão. Seus pezinhos me arranhavam, as penas se eriçavam, o coraçãozinho dele batia como um bumbo, quase saindo do peitinho. ‘Será que vai morrer de susto?’ – pensei assustado com aquela inusitada responsabilidade por uma vida e passei-o ligeiro para meu irmão. Foi um breve alarido, o passarinho foi solto, tomou rumo desconhecido. Ficaram os risos nos outros e, em mim, aquela agonia dando cãibras na barriga. Não sei se foi vovó ou mamãe quem amarrou os meus cadarços. Só sei que fui para o Jardim, engolindo ânsias. Dei outra olhada na chave. Olhei mais firme ainda e então me imaginei a girá-la. Foi uma vontade doida que me deu. Acho que juntava medo, raiva e ódio. Do meu pai e do trem. Agora a memória me falha: ora lembro que virei a chave, ora recordo que tentei, mas não tive força suficiente para dobrar aquele ferro. Mas eu já havia pecado em pensamento. À noite suei com pesadelos assombrados por rangidos de trilhos, escorrer de sangue e ecoar de gritos das vítimas do desastre que não aconteceu de verdade. E, logo ao acordar, senti aquele ardume nas costas. Achava que fosse um mosquito. Mas, não! Era uma pequena verruga que tinha nascido naquela noite. Logo em mim, euzinho que nem apontava as estrelas com medo que saísse verruga nos dedos. Mas essa, nas costas, não teve médico nem simpatia que curasse. Nunca mais parou de crescer. Descobri que ela aumentaria a cada erro meu, a cada remorso sentido. Como aquela lata de Leite Moça, que, escondido, arteiro e guloso, furei com um prego e a suguei com todo o meu desejo de então. Como a cola com letra miudinha na prova de ciências. O beijo que neguei a papai antes que a tampa do caixão fosse fechada. Os botões do casacão de vovó que arranquei para fazer o meu time de futebol de botão. O disco de rock do amigo do meu irmão que arranhei por ciúme. Os cem cruzeiros que roubei de cima da geladeira para pagar uma olhadela nos seios da filha da vizinha. O jeans importado que furtei de um guri rico (porque eu era invejoso e só tinha Topeka, uma imitação que não desbotava como a legítima calça Lee). O tapa que dei naquela prostituta, fazendo-a emborcar a cara espantada na bacia de suas higienes. O filho que concebi com a balconista da casa de tecidos e rejeitei. Os abortos dos quais fui cúmplice. O assassinato que presenciei borrado e calado na esquina da farmácia. O meu minguado amar e desmedido desconfiar de todos. A cada um desses pecados e de outros bem piores que não contarei por pura e creio que justificada vergonha, a verruga se agrandava e se enfeiava. Desde muito tempo acompanho, desacorçoado, impotente, cada maldito instante de seu crescimento. Primeiro, sinto um comichão na verruga; em seguida, um puxão ardido, como se alguém a beliscasse com violência. Imediatamente eu a apalpo e constato seu asqueroso crescer. Quando tiro a roupa para tomar banho, não consigo evitar. O movimento é instintivo. Volto minhas costas para o espelho e vejo mais uma vez aquele adereço repugnante. Como sempre faço, tola e inutilmente pisco os olhos para ver se aquilo desaparece, mas continua ali. É de uma cor cinza esverdeado. É uma grande bolsa flácida, de consistência pegajosa e áspera, com pelos, reentrâncias e dobras, em que se acumula meu suor oleoso. Tenho dificuldades para escová-la. A cada dia ela está maior, forçando minha coluna a se curvar mais ainda. Comprei uma escova de cabo comprido mas, por mais que dobre os braços para trás, não consigo limpá-la totalmente. O cheiro azedo persiste, como um sovaco suado. Não ando mais de seis metros sem ter que sentar e descansar. Por isto, carrego sempre a banquetinha. Ela é dobrável, prática de carregar. Trabalho sentado. Quando tenho que me deslocar para algum ponto mais distante, até mesmo para ir ao banheiro, levo a banqueta, onde acomodo por instantes meu cansaço, sob os olhares ora penalizados ora galhofeiros dos colegas do escritório da fábrica. Tento curvar para cima a coluna e respirar, inspirando e expirando demoradamente. Por causa dessa curvatura, minha estatura diminuiu. Um dia desses, quando caminhava, senti um impacto no queixo. Estúpido, custei a perceber o que sucedera: era meu joelho. Tão curvado estou, por conta do peso dessa coisa, que não consigo mais caminhar sem bater com o rosto em minhas pernas. Eu, que fora atleta de basquete na juventude, com um metro e noventa e quatro centímetros, envergadura que atemorizava meus adversários, não passo hoje, aos cinquenta e sete anos, de um metro e quarenta e cinco. Esforço-me para não pecar mais. Não reajo às zombarias e fico quieto até mesmo quando o dono do mercado enfia a mão na balança, sob meu queijo, dobrando o peso do produto. O abusado nem procura disfarçar. Dona Alvina diz que tenho sangue de barata e até já passou uma descompostura no homem. Talvez ela tenha razão. Não retruco. Permaneço na minha amarga quietude, desfiando as lembranças assentadas entre as bagagens de remorsos...”
A TRANSFORMAÇÃO - Euclides sentiu um novo repuxar nas costas. Estranhou, pois agora acreditava andar bem comportado. Perguntou-se se estaria pecando em pensamento. A bolsa havia crescido mais e agora adquirira uma casca, que já alcançara as suas nádegas, ganhando a forma de um rabo que rasgara-lhe a calça e apontava para o céu. Ele estava se transformando, estava virando um réptil. Compulsivamente arrastava-se para o lodo e percebia-se integrado naquela natureza úmida, grudenta, com variados vermes e folhas. Chafurdou, mergulhou, sentiu-se quase contente. Então, o grito sobressaltou-o: “Moço!”. Voltou-se e viu os olhos esperançosos daquele menino de calças curtas e pernas finas: “Moço, posso tocar as suas costas? Mamãe disse que dá sorte.” A meiguice venceu a natureza. Euclides arrastou-se em direção ao pequeno e encolheu-se à sua frente, como um animal obediente, de modo a lhe oferecer a corcova. O menino tocou-lhe as costas com força e partiu bruscamente, sem se despedir. Euclides sentia-se bem ali no charco, mas a noite chegara e ele precisava voltar à pensão. Era preciso descansar para trabalhar no dia seguinte. Saiu então estapeando a lama em seus braços e pernas. Caminhava com mais dificuldade, pois agora tinha que estender os braços para trás e segurar a banqueta de forma que ninguém visse o seu rabo. Teria que tomar banho, trocar de roupa. Precisaria usar outra calça. O terno ficara descomposto, assim como sua vida.
O FIM - Na quinta manhã em que Euclides não desceu para o café, dona Alvina, Antônio e os outros hóspedes decidiram arrombar a porta de seu quarto. Dona Alvina gritou, pois encontraram-no morto, enlameado e sob uma horrenda forma, mistura de homem e de lagarto, semivestido, com farrapos do terno misturando-se com folhas de árvores. Antônio apontou a janela do quarto, cujo parapeito molhado e sujo denunciava o último caminho que Euclides havia percorrido, do pântano ao quarto, na sina de quem nasceu homem e morreu quase bicho.
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