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Hora do Recreio

  • Roberta Güttler de Oliveira
  • 9 de mai. de 2015
  • 5 min de leitura

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Dorinha era ainda mais pobre do que eu. Tínhamos a mesma idade, sete anos. Estudávamos no colégio estadual do nosso bairro abandonado. Não sabia onde era a casa dela, o bairro era muito grande. Só sei que quando a aula acabava saíamos portão afora. Eu pegava a direita, Dorinha ia pra esquerda. Cada uma pro seu mundo e nos reencontrávamos no dia seguinte.

Eu andava vinte minutos pra ir pra escola de manhã cedinho e mais vinte pra voltar pra casa, sempre acompanhada de um grupo de crianças de idades misturadas. A gente se cuidava.

Quando chegava em casa minha mãe não estava, almoçava e ficava sozinha. Mamãe saía cedo pra trabalhar na casa da patroa dela e só chegava depois das dezenove horas. Já trabalhava há anos lá...

Mamãe deixava tudo arrumadinho, era muito caprichosa. Éramos só nós duas, sempre me criou sozinha e o dinheiro pra viver era pouco, praticamente apenas pra pagar a luz, aluguel e a comida, sempre a mesma: bananas, arroz com feijão e pão com manteiga. Mamãe dizia que ter o pão com manteiga era nosso luxo, pois muitos não tinham nem o arroz com feijão. A banana vinha da casa da patroa que nos dava em cachos.

Morávamos numa casinha de madeira, sobre um barranquinho de barro vermelho com um mato ralinho. Eram só dois cômodos, cozinha e quarto juntos e um pequeno banheiro. Dormíamos nós duas no colchão de solteiro que ficava no chão, no canto oposto da pia e fogão.

Mamãe não era muito de ficar me abraçando ou beijando. Também não era muito de conversa, mas sempre me abraçava enquanto dormíamos. Ela dizia que era pra me esquentar. As conversas que lembro dela eram frases soltas enquanto ia de um lado pro outro: "Somos pobres mas nem por isso temos que ser porcas e desorganizadas."

Quando chegava a noite em casa, perguntava se eu tinha feito as tarefas da escola e da casa. Nunca revisava minhas tarefas escolares, pois não sabia ler, mas admirava meus desenhos. Em casa eu sempre varria o chão, lavava as roupas com sabão em barra no tanque que ficava na rua, pendurava no varalzinho capenga que ficava próximo do barranquinho, recolhia e dobrava. Não me importava, ocupava meu dia.

Os dias de chuva eram chatos, demoravam pra passar, não dava pra fazer as tarefas domésticas. Tinha goteiras dentro de casa. Ficava brincando sobre o colchãozinho com minhas bonecas usadas. Esperava ansiosa a chegada de mamãe.

À noite, mamãe aproveitava pra cozinhar o almoço do dia seguinte e preparar meu lanche da escola. Eu era uma das poucas crianças que levava lanche. Normalmente era a banana, mas às vezes ia o pão com manteiga que mamãe sempre dizia que tínhamos sorte em ter pra comer.

O pão que comíamos era daqueles de fôrma já fatiados, pois durava mais. Mamãe comprava o saco que vinham exatas vinte fatias, já contando as tampinhas, que eram nada mais que as fatias extremas do pão. Ela sempre contava que a patroa não gostava de comer as tampinhas, então sempre que tinha na casa da patroa já as retirava do saco e as levava pra nossa casa, assim conseguíamos ter, ao menos, mais duas fatias naquela semana. Mamãe dizia ter passado já muita fome na sua vida e fazia de tudo pra eu não passar também. Ela conseguiu, sempre tive minhas bananas, meu arroz com feijão e meus pães com manteiga.

Dorinha já não teve a mesma sorte que eu. Ela nunca levava lanche pra escola. Só ia pra escola pra poder tomar o café da manhã que era oferecido à todas as crianças bem cedo, antes do sinal tocar. Acho que era sua única refeição no dia. Não deveria almoçar nem jantar. Também raramente fazia suas tarefas escolares.

Éramos muito amigas, dividíamos a carteira escolar e sempre ficávamos juntas no recreio. Assim que nos conhecemos, ela sumia no início do intervalo, só aparecia no final. Logo percebi que ela se afastava porque não tinha seu lanche. Esperava eu comer sozinha para depois brincar comigo. Então comecei a dividir meu lanche com ela. Metade da banana era minha e a outra metade era dela. Metade de uma fatia do pão que mamãe preparava era minha, outra metade dela. Era realmente apenas uma fatia de pão dobrado ao meio com manteiga dentro, não era um sanduíche de fatias duplas. Ao fim, restava para cada uma de nós um pequeno sanduíche de manteiga quadrado de, mais ou menos, uns quatro centímetros de lado.

E assim eram todos os dias. Dorinha ficou sem jeito da primeira vez em que me viu partindo meu sanduíche. Mas, em silêncio, o aceitou...a vergonha era tamanha que nem conseguiu agradecer. Ao pegar o pão da minha mão, pude ver que a sua estava bem suja. Reparei melhor todos os dias depois disso...Dorinha sempre estava suja.

A mim isso não importava, eu ficava feliz em dividir meu lanche com Dorinha e assim também podia ter sua companhia durante todo tempo do intervalo. Não nos desgrudávamos mais.

Nunca contei a minha mãe sobre minha amizade com Dorinha e sobre dividir meu lanche. Ela tinha muita dificuldade em conseguir comprar nossa comida do mês e não ficaria feliz em me ver comendo apenas metade do meu sanduíche ou da minha banana.

Num recreio desses, como sempre, eu e Dorinha já tínhamos andado de mãos dadas, como melhores amigas sempre fazem, até o banquinho de concreto torto que ficava sob a pitangueira, localizada no canto da quadra de areia. Já tínhamos achado graça dos meninos se encrencando no jogo de futebol. Já tínhamos dividido meu meio sanduíche com manteiga e Dorinha já estava segurando-o com suas mãos sujas.

Quando dei minha primeira mordida e levantei a cabeça ao me encostar no tronco da pitangueira, avistei minha mãe observando-me em pé, imóvel, com uma expressão inenarrável. Ela berrou meu nome.

Nem voltei para o segundo período de aula. Peguei minha mochila e fomos pra casa de mãos dadas e em silêncio. Eu não conseguia decifrar seus pensamentos. Parecia muito chateada. O caminho foi longo, me pareceu demorar muito mais que os vinte minutos usuais.

Chegando em casa, a única coisa que minha mãe me falou foi mandar eu tomar um banho e me deu uma roupa limpa. Saímos novamente, pegamos o ônibus e fomos ao cemitério. Era um velório. Ficamos lá até tarde da noite e voltamos novamente pra casa. Fomos dormir e, como todas as noites, mamãe abraçou-me, mas dessa vez pude escutá-la tentando disfarçar seu choro.

Na manhã seguinte, minha mãe não foi ao trabalho. E, pela primeira vez desde que havia me buscado na escola na hora do recreio, conversou comigo. Falou que sua patroa havia falecido e que agora não tinha mais emprego. Iria me levar até a escola e sair para procurar um trabalho novo.

No caminho pra escola imaginei que, provavelmente até mamãe conseguir se empregar, eu não teria mais o meio sanduíche de lanche e nem as bananas que sua patroa sempre nos dava. Em frente a escola, ao se despedir, mamãe me deu um beijo carinhoso como nunca havia dado. Um beijo demorado em minha bochecha direita.

Durante as primeiras aulas fiquei preocupada em como explicar a Dorinha que eu não poderia mais dividir meu lanche com ela. Minha mãe provavelmente havia ficado chateada ao me ver comendo um lanche pela metade. Além disso, estava desempregada e não teria dinheiro suficiente pra nos alimentar, muito menos pro lanche da escola, até conseguir um meio de vida.

Bateu o sinal. Era hora do recreio. Dorinha foi me puxando pela mão, levando-me a nossa pitangueira. Fiquei nervosa. Havia pegado meu potinho de manteiga onde mamãe sempre punha meu lanche. Ao sentarmos no banquinho de concreto torto, fiquei tentando arranjar coragem pra dizer que não poderia mais dividir meu lanche com Dorinha.

Ao abrir o potinho, uma surpresa! Mamãe havia colocado um sanduíche inteiro, com duplas fatias de pães já repartido em dois pedaços. E entendi que poderia compartilhá-lo com Dorinha...


 
 
 

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