O E-mail do Veterinário
- Monique Pfau
- 20 de mar. de 2015
- 5 min de leitura

"Ola Monique. A Saori esta aqui e está mal. Esta magra. Anêmica desidratada. Repetimos o ultra som e o tumor cresceu muito rápido e se espalhou. Esta no soro e com medicação p dor. Os rins estão falhando. Infelizmente não sobrivevera . talvez tenhamos que amenizar o sofrimento caso VC autorize pois cirurgia não vai aguentar. O tumor se comportou agressivamente. Aguardo comunicação."
Estou na Bélgica, longe dela. A decisão deverá ser feita por e-mail. Eu não quero tomar esta decisão. Mas enquanto eu não decido, ela continua sofrendo. Foram 18 anos e alguns meses, até agora. Em junho de 1996, eu andava na rua de barro que ligava o Pântano do Sul ao Balneário dos Açores e eu ouvi aquele miado estridente. Era ela. Pequena. Suja. Fraca. Era ela. Era ela. Era a minha Saori! Eu salvei a vida dela. Eu não quero tirá-la! Era ela. Era ela. O grande amor da minha vida. Era ela. Meu deus, estou desesperada! Eu não sei mais como é a vida sem ela. Por que diabos eu estou aqui? Eu devia estar com ela. Porque ela é a minha princesa, minha pretinha, minha amada, minha pequena, minha pérola negra, meu feijãozinho, minha chatinha, minha neném... ela é um pedaço de mim e quando eu olho nos seus olhos, eu vejo os meus. Eu me vejo invertida dentro dela. Mas acho que eu não vou ver mais. Meu deus, eu não vou ver mais? Como pode isso? Ela tem um cheirinho que eu gosto de cafungar, bem entre o pescoço e o peito, é tão gostoso. Meu deus, eu nunca mais vou sentir esse cheiro? Não! Eu não aceito isso! Eu não estou pronta! Mas eu deixei ela! Mas não faz nem duas semanas! Faz exatamente duas semanas! Saori! Saori! Saori! Saori! Saori! Saori! Saori! Saori! Fica comigo!
Eu nunca mais vou te chamar? Eu nunca mais vou tentar te entender? Que medo! Eu não sei como é a vida sem você! Eu não quero saber como é a vida sem você! Estou sendo egoísta? Eu sempre fui, né? Estou aqui porque achei que tinha esse direito. Mas eu não tenho! Que merda de mãe eu sou? Deixei minha gatinha doente. Eu não sabia que tu estavas doente! Achei que a gente podia cuidar de ti! O que eu sei? Eu não sei nada. Eu fico tentando descobrir as coisas de um jeito fácil. Mas eu não sei de nada. Não sei nem tomar uma decisão. De que podem te matar. Eu nem quero saber tomar esta decisão. Mas parece que vou ter que tomar.
Me promete ficar perto de mim, promete que as nossas almas estão conectadas, como eu sempre tive a certeza de que estão? Quando eu tiver uma filha, seja a alma da minha filha! Eu vou cuidar de ti, de tudo, eu vou te proteger de todas as coisas, eu vou ser a melhor mãe do mundo. Você pode voltar como humana? Eu pensei que talvez tu voltasses como gatinha, mas não vou agüentar mais uma vez que a tua vida seja menor que a minha. Na próxima eu morro primeiro, por favor.
A Tii já se foi, mas eu ainda via ela lá em casa, preta e branca, miando fanho. E agora? Eu nem assim vou te ver, porque não estou em casa. Não vou te ver emboladinha dormindo no canto escolhido da semana, do mês. Não vou ver. Pelo menos me visita nos sonhos? E me perdoa? Me perdoa por ter te deixado em um momento tão difícil. E pela decisão que eu ainda não tomei e que eu não quero tomar.
Será que tu agüentaste firme até o dia que eu fui embora para que eu fosse em paz? Não deu certo. Eu não fiquei em paz em nenhum momento até agora. Só angústia, dor, medo. Mas se for, obrigada. A gente se viu e se olhou nos olhos. E eu temia que fosse a última vez. Você dormiu nas minhas malas durante toda aquela semana. Algumas roupas ainda devem ter os teus pêlos. Quem sabe eu os encontro e faço uma clonagem? Para eu ter você de novo? Nem assim seria a minha Saori. Porque a minha Saori é aquela que eu encontrei miando em junho de 1996, que dormiu comigo tantos anos, que deitou no peito para acalmar minha tristeza, que corria de lado, que brincava com a cachorra Nala, que achava saídas na casa para fazer o que quisesse quando quisesse, que foi mãe da Tii, do Thor, do Shyriu e do Rajah. A Saori que subia no telhado, que só comia ração seca até uns meses atrás, que me abraçava que nem um macaquinho e roçava o rosto no meu queixo. A Saori que sempre sentiu um frio desgraçado no inverno e se enfiava embaixo das cobertas sem desarrumar a cama, que subia no trinco das portas para abri-las, mesmo anestesiada depois de uma operação de castração.
Um amor que nem cabe no peito. Saori exibida. Sempre que tinha reunião de amigos, ia se exibir e mostrar que, apesar da idade, dava um banho nesses filhotes por aí. Subia em árvore, no varal lá de casa e ficava roçando os caninos nos fios. Brincalhona, sempre pronta para o ataque. Meus braços e mãos sempre arranhados. Mordia, me segurava com as mãos e me chutava com os pés. Eu queria exprimir os sons dos teus miados, mas a escrita não me permite a nitidez. A cara de louquinha. Ah, eu devia estar sorrindo ao lembrar de tudo isso, mas só consigo chorar.
Você é a melhor coisa do mundo. Uma princesa em forma de gato. Linda demais.
Eu te amo tanto que nem cabe em palavras. A dor que eu sinto neste momento é horrível. Mas eu me pergunto se é maior do que a dor que tu estás sentindo agora? Eu não quero que tu sofras, tu não mereces isso. Queres a cirurgia? Queres esperar? Queres adiantar a morte? Eu faria o que tu me dissesses para fazer. Eu queria que tu mesma decidisses pela tua vida, não eu. Eu não tenho este direito. Eu sou uma reles mortal, como tu. Eu não sou tua dona, eu sou tua mãe, tua companheira, tua amiga, tua colega de casa.
Ninguém, ninguém está online. Será que eu tenho que sofrer sozinha mesmo? Nem o Lars, nem meu pai, nem a Priscila, nem minha mãe, nem a Juli que adora gatos. Eu queria tanto conversar com alguém. Estou me sentindo péssima. Estou desesperada. Que horror!
E então esperei uma noite inteira antes de permitir. No fundo eu esperava que ela decidisse ir sozinha. Mas não aconteceu. Ela só ficou ainda mais fraquinha. Então eu tomei a terrível decisão. Hoje às 14:30 no horário da Bélgica, 11:30 no Brasil. Hoje ela foi. Eu pedi para enterrá-la pertinho da Tii, que se foi no ano passado. Acabou. Acabou a era das Saoris. As três gerações que deixaram este mundo em um movimento inverso, a neta Pietra, a filha Tii e a mãe, Saori. Ficam as lembranças. E uma dor no peito que me aperta toda.
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